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Entre mortos e feridos, salvam-se os brancos e ricos

Recentemente, Maguila virou notícia por iniciar um tratamento com Canabidiol contra uma doença, a Encefalopatia Traumática Crônica. Sua antiga vida como boxeador peso-pesado foi responsável pelo desenvolvimento da doença degenerativa no cérebro. A discussão sobre o uso da maconha para fins terapêuticos e medicinais teve um progresso extraordinário.

Os anos de luta de ativistas, associações e coletivos resultaram em muitos avanços. Alguns deles são: a retirada da maconha da lista de drogas mais perigosas; a aprovação de uma lei estadual que incentiva o cultivo de cannabis para fins de pesquisa; a concessão de habeas corpus coletivo à Cultive (Associação de Cannabis e Saúde - SP) para que 21 famílias possam plantar maconha em suas casas sem correrem o risco de serem presas; a retirada do THC (tetra-hidrocarnabinol) e do CBD (Canabidiol) - substâncias componentes da Cannabis - da lista de substâncias que não podem ser prescritas ou manipuladas no Brasil; a concessão de autorização à Apepi (RJ) recebeu autorização para plantio, realização de pesquisas e fornecimento de medicamentos para pacientes associados; e a produção do primeiro remédio brasileiro à base de canabidiol. Mas o preço ainda é uma grande barreira. O frasco de 30 ml é vendido por cerca de R$ 2,3 mil (valor com desconto).

A maconha é a pauta da vez. Muito se tem discutido sobre a cannabis pela perspectiva da saúde. Mas e a questão social e racial? E a população favelada e periférica? Como os cidadãos que contam com um auxílio emergencial para comer poderão pagar dois mil reais num medicamento? Quando os remédios da maconha - os de qualidade - chegarão no Sistema Único de Saúde? Como cultivar em um território que sofre frequentemente com operações policiais? Precisamos pensar em alternativas para aqueles que tiveram suas vidas ceifadas e seus direitos violados pela guerra às drogas que teve apoio da Lei de Drogas.

Por esses dias, saiu uma matéria sobre a aprovação de um projeto de lei que legaliza o uso recreativo da maconha, em Nova York. Nele, algumas das medidas preveem verbas que serão destinadas às pessoas que sofreram os impactos da “War on Drugs” (guerra às drogas), como a remoção dos antecedentes criminais de pessoas condenadas por crimes relacionados à cannabis, a suspensão de multas de quem havia sido pego com até 85 gramas (o novo limite de posse individual) e empregara contratação de milhares de pessoas no mercado da cannabis. Além disso, estabelece a criação de um imposto sobre o comércio legal da substância.

 

Entretanto, pensar em formas de reparação aos principais alvos da guerra às drogas no Brasil ainda é um sonho.

 

Sabemos que a classificação das substâncias como lícitas ou ilícitas não tem uma motivação exclusivamente relacionada à saúde. Nos Estados Unidos do século XX, os hispânicos eram relacionados à maconha, os chineses ao ópio, os italianos ao álcool. Hoje em dia, as bebidas alcoólicas - uma droga lícita - são responsáveis pela morte de uma pessoa a cada 10 segundos. Isso significa que seu uso abusivo mata três milhões de pessoas por ano. A criminalização de algumas substâncias sempre foi pautada no racismo e na xenofobia.

Em 1830, o consumo de maconha foi proibido no Rio de Janeiro. O objetivo era criminalizar os negros escravizados e libertados que usavam o Pito do Pango (um dos nomes que utilizados para a maconha na época). Desde lá, quase nada mudou. A lei n° 11.343, de 2006, acabou com a pena de prisão para o porte de drogas para consumo pessoal, mas aumentou a pena mínima para tráfico de drogas para cinco anos. Mas quem define isso quem é usuário e quem é traficante? O segundo parágrafo do Art. 28 é direto: Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente). A atual legislação brasileira continua incriminando o pobre e o negro.

Em pleno século XXI, o sistema de justiça criminal do Rio de Janeiro gastou mais de R$ 1 bilhão de reais com a guerra às drogas e violações de direitos (Projeto "Drogas: Quanto custa proibir", 2017). Com esse valor daria para: custear a educação de 252 mil alunos em uma escola do ensino médio; construir 121 escolas; manter o funcionamento de 81 Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) em favelas e periferias; beneficiar 156 mil famílias com aluguel social ao longo de um ano; ou vacinar 18 milhões de pessoas contra a Covid-19. Os dados são do relatório Um Tiro no Pé: O impacto da guerra às drogas no orçamento do sistema de justiça criminal do Rio de Janeiro e de São Paulo, realizado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC).

Pensar em uma política de drogas que repare os danos causados por décadas de violações de direitos e violências é urgente. São inúmeros os impactos da guerra às drogas no cotidiano dos moradores das favelas e periferias. Ano passado, durante o primeiro ano da pandemia e isolamento social, somente o conjunto de favelas da Maré, no Rio de Janeiro, enfrentou 16 operações. Durante três dias, as escolas tiveram o funcionamento interrompido e por oito dias as atividades nas unidades de saúde foram suspensas. Uma das medidas da “ADPF das Favelas” que restringe operações policiais durante a pandemia já havia sido estabelecida.
O encarceramento em massa também é fruto dessa guerra fracassada. O Brasil é um dos três países que mais encarceram pessoas no mundo. Só até o primeiro semestre de 2020, havia cerca de 760 mil pessoas encarceradas. Mais de 32% dos crimes eram relacionados à Lei
de Drogas. Os dados são do Sisdepen (Sistema de Informações do Departamento
Penitenciário Nacional).

 

Não podemos deixar o debate sobre reparação para segunda ordem ou tratar como se fosse uma pauta secundária. Sem essa discussão qualquer política de drogas continuará racista.

Publicado dia 22/04/2021 na coluna do PerifaConnection, no Folha de São Paulo