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Nos querem para trabalhar, mas nos negam o prazer de viver

O apartheid sociorracial vivido por favelados e
periféricos na cidade do Rio de Janeiro

 

Quem nasce em uma favela ou periferia do Rio de Janeiro tem que desenvolver rapidamente mecanismos psicológicos semelhantes a qualquer ser humano que tem o desprazer de viver numa guerra. Os recorrentes tiroteios e confrontos traumatizam e adoecem uma população pobre e preta, que por essa razão, vive sob a continuidade da opressão e resquícios da ditadura.

A atual política de drogas brasileira não se justifica do ponto de vista econômico e muito menos da justiça, uma vez que em décadas não se alcançou os supostos objetivos de combate ao tráfico de drogas e desarticulação dos grupos armados. Todavia, o Brasil alcança frequentemente mais do que 40 mil assassinatos violentos por ano, em que a sua maioria decorre da aposta na “guerra às drogas” que, por aqui, chamamos de guerra aos pretos e pobres. Certas práticas, como a invasão de domicílios sem mandado, agressão, tortura e desaparecimento de civis, assim como as inúmeras execuções extra-judiciais, remontam ao período opressivo da ditadura civil-militar (1964-1985), que teve seu fim com a redemocratização, mas que permaneceu para pessoas que moram em favelas e periferias.

Quando pensamos no proibicionismo das drogas, temos que voltar um pouco mais no tempo, quando o Brasil foi pioneiro na proibição da maconha, controlando uma planta usada por africanos e afrobrasileiros sem justificação científica, mas como parte de uma série de imposições sobre a cultura africana em terras brasileiras. O proibicionismo hoje, assim como antes, se mantém por questões morais, e econômicas à volta de controlar determinados corpos.

 

A morte é hipócrita no Brasil, pois a mesma polícia

que mata sem dó nas favelas, trafica e consome o mesmo pó que encontra nelas. 

 

No entanto, o problema não são as drogas e quem as consome, mas a violência e criminalização de determinadas pessoas perante uma política que aposta na morte, utilizando a questão das drogas como “cortina de fumaça”. Inclusive, as drogas são infinitamente menos perigosas que o Estado brasileiro e sua máquina de guerra. As drogas deveriam ser uma questão de Saúde Pública, focada no cuidado das pessoas que desenvolvem um uso problemático e na garantia da saúde de nossa população de um modo geral.

O proibicionismo impede uma melhor relação da sociedade com as drogas, impossibilitando o acesso à informação e saúde, uma melhor regulamentação e proteção aos grupos de risco.

Como fica a saúde mental das pessoas que vivem sob constante possibilidade de morte? E as crianças que, nas escolas, precisam se esconder debaixo de suas mesas enquanto as balas atravessam a janela de sua sala de aula? Poderia fazer mais uma série de perguntas que dificilmente teriam respostas justas.

Enquanto uns lucram, a maioria adoece. Esse adoecimento pouco notado pela sociedade e autoridades públicas é preocupante. A população que mais precisa de acesso aos serviços de saúde são as que menos acessam, uma vez que a criminalização de territórios favelados “justificam” a precariedade ou o não fornecimento de determinados serviços públicos, como saúde, educação e saneamento básico.

As paredes invisíveis da favela  

Por falta de acesso a direitos básicos e à cidade, muitos jovens ficam presos dentro de quatro paredes invisíveis, mas muito bem estabelecidas, em que os limites são exatamente o território da sua favela. Essas paredes são resultados de um combinado de opressões, que vão da abordagem policial à forma que são tratados por civis comuns que, tomados pelo racismo e aporofobia (conceito criado nos anos 1990 pela filósofa espanhola Adela Cortina para designar a aversão aos pobres, que se manifesta desde as atitudes individuais até as políticas públicas. No Brasil, também é conhecida como “pobrefobia”). Mesmo com tamanha desvantagem e desestímulo, a população favelada nunca baixou a cabeça e ocupa os mais diversos espaços. Ocuparemos todos os espaços!

Anualmente, as polícias articulam operações para fiscalizar e controlar a entrada de ônibus vindos dos subúrbios em direção à Zona Sul, área nobre da cidade. Com a alegação de que pretendem combater os “arrastões” (expressão utilizada para roubos realizados por um maior número de pessoas que, nas praias ou locais públicos, correm e levam os pertences dos civis que estiverem no local) e assaltos, pessoas pretas e pobres são os principais suspeitos, impedidas de acessar áreas públicas de lazer.

No Rio, assim como em outras cidades brasileiras, o “apartheid racial” existiu. Ainda que a “história oficial” não trate assim, a segregação racial ocorreu, ainda que de forma velada. Ao longo do século XX criou-se a ideia que se vivia por essas terras em uma “democracia racial” e que as três raças - brancos, pretos e indígenas - conviviam harmoniosamente, uma vez que a mestiçagem, fruto da mistura entre essas raças, era a prova viva de seu bom convívio.

No entanto, sabe-se que a “mistura” entre essas raças é resultado de mais um processo da violência colonial, do estupro cometido por homens brancos contra mulheres negras e indígenas, assim como da política de embranquecimento da população brasileira estabelecida, mais intensamente, a partir da Primeira República em 1889, um ano após a suposta abolição
da escravidão.

Criando espaços de controle

Não faltaram medidas de controle e repressão para a recém liberta população negra. Uma das primeiras medidas estabelecidas pela então capital da República foi a de se livrar dos aspectos coloniais e da escravidão, promovendo reformas urbanas e sociais que apagassem o passado indesejado. Para além de apagar o passado colonial presente na arquitetura, aproveitaram para remover e expulsar os “indesejáveis” para os limites da cidade, para margem.

As demolições e remoções dos antigos cortiços (casas de cômodos que servia para habitação coletiva) foi acompanhada de leis que proibiam a circulação, no centro do Rio, de pessoas
que não estivessem calçadas ou de chapéu. Ainda que a lei não se voltasse às pessoas pretas, eram exatamente essas que eram atingidas. Assim como a lei da vadiagem, crime previsto no Código Criminal de 1830 e no Código Penal de 1890, o primeiro da República, que penalizava
a população negra sem “trabalho formal”. Esses mecanismos foram reelaborados ao longo
do século XX.

Despossuídos de um lugar na cidade e acesso a moradias formais, essa população passou
a morar em lugares que viriam a se chamar favelas. A favela é fruto de uma decisão política, possível em uma sociedade que permanecia escravocrata, concentrava riqueza e não
pagava dignamente sua classe trabalhadora para que pudesse sustentar financeiramente habitações regulares.

As justificativas para controlar e oprimir as favelas se sustentam, atualmente, no suposto combate ao tráfico de drogas. A criminalização do território favelado e da sua população pela grande mídia fazem a manutenção da mentalidade racista de nossa população. Isso resulta em uma apatia social com relação à violação das vidas nas favelas, em que as atrocidades e desrespeito aos direitos humanos parecem não incomodar nossa população.

Contudo, a favela é cidade, assim como o favelado é cidadão. Tudo que foi conquistado até aqui é fruto de muita luta e sangue derramado. Mesmo em condições precárias, os favelados lutaram pelo direito à moradia, pelo direito à água e luz, pelo direito de estudar e de ser reconhecido como trabalhador. Mas a vida não é só trabalho! Fomos nós que construímos essa cidade e temos direito a ela. Podemos estar nas praias, museus, shoppings, parques e também nas favelas. Os problemas continuam, mas hoje sabemos quem são os verdadeiros responsáveis.